terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Vermes nada insignificantes

Túneis fossilizados sugerem que organismos complexos surgiram antes da explosão de diversidade do período Cambriano
MARIA GUIMARÃES | ED. 260 | OUTUBRO 2017

Revista Pesquisa FAPESP
Podcast: Juliana Leme
00:00 / 10:51
Marcas muito discretas, como fiapos embutidos em rochas retiradas de pedreiras na região de Corumbá, em Mato Grosso do Sul, por anos passaram despercebidas. “Nem enxergávamos”, lembra a paleontóloga Juliana Leme, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP). Ela começou a trabalhar com esse material em 2010, estudando os fósseis dos primeiros seres vivos com esqueleto do planeta (ver Pesquisa FAPESP nº 199). Nos últimos anos, porém, ficou claro que ali há um tesouro ainda mais valioso: os tais fiapos são pistas deixadas por seres mais complexos do que se esperava entre 541 milhões e 555 milhões de anos atrás, quando se imaginava existir apenas organismos bem mais simples.

Os fiapos são, de acordo com artigo publicado em setembro na revista Nature Ecology & Evolution, túneis deixados por vermes muito pequenos conhecidos como nematoides. Naquele momento de evolução da vida, caracterizado por organismos moles habitando a superfície, foi uma surpresa encontrar indícios de vermes que se locomoviam por contração muscular e escavavam o sedimento, mesmo que chegassem apenas a alguns milímetros (mm) de profundidade. É o registro mais antigo de fósseis de animais conhecidos como meiofauna, seres de no máximo 1 mm que habitam o sedimento no fundo do mar ou em corpos de água doce.

A região de Corumbá, agora parte do Pantanal, naquela época era mar. As rochas da região já eram muito procuradas pelos paleontólogos por conterem vestígios da fauna conhecida como biota de Ediacara, que começou a surgir entre 580 milhões e 560 milhões de anos atrás, como os gêneros Corumbella e Cloudina. Por isso, quando o paleobiólogo britânico Martin Brasier, da Universidade de Oxford (Reino Unido), veio à USP em 2012 como professor visitante, ele foi visitar a área e levou seu então aluno de mestrado, Luke Parry. Eles também não enxergaram os sutis riscos nas amostras de rocha que levaram para continuar e aprofundar os estudos.

De volta à Inglaterra, Parry examinou as amostras usando a técnica de microtomografia tridimensional por raios X e então enxergou os túneis que chegam a mergulhar 7 mm na superfície, atravessando camadas de sedimento. Mais do que isso, as marcas feitas pelos antigos moradores dos túneis indicam o tipo de movimento que faziam, deixando espaços ligeiramente mais alargados, como se fossem gomos. Trata-se, segundo os pesquisadores, de cicatrizes de contrações musculares, marcas de organismos classificados como bilaterais, já portadores de certa complexidade morfológica. Os túneis são preenchidos com pirita, um material diferente da camada de sedimentos externa, indicando que ali havia muco orgânico.

O achado era surpreendente em rochas da Formação Guaicurus, do início do Cambriano. Nessa época, 541 milhões de anos atrás, começou a grande diversificação conhecida como Explosão Cambriana da Vida, quando surgiu boa parte dos filos que deram origem à biodiversidade atual. O orientador, Brasier, faleceu em 2014 em um acidente, mas Parry continuou o trabalho e este ano terminou o doutorado. É ele o primeiro autor do artigo agora publicado.

Em 2016, em parceria com o paleobiólogo Alex Liu, da Universidade de Cambridge, Parry e os pesquisadores brasileiros encontraram vestígios dos mesmos organismos em amostras retiradas de outra camada, mais antiga, na Formação Tamengo. A descoberta foi mais surpreendente ainda, já que os fósseis ali armazenados são mais antigos e, ainda por cima, podem ser datados graças à presença de cinzas vulcânicas coletadas pelo geólogo Paulo Boggiani, do IGc. Essa datação, considerada confiável, também foi feita na Inglaterra e atesta a existência desses organismos antes do Cambriano. Camadas de cinzas vulcânicas ainda não foram encontradas na Formação Guaicurus, o que torna mais complicada a datação de fósseis encontrados nela.

De volta ao passado
 
Como não se pode falar em comprovação em ciência, sobretudo quando se trata de acontecimentos tão antigos, os pesquisadores são cautelosos. “Se nossa interpretação estiver correta, significa que já havia organismos complexos antes da Explosão Cambriana da Vida”, sugere Juliana, da USP. Esses animais já estariam modificando o ambiente ao perfurar o sedimento e assim levar oxigênio para as camadas internas, possivelmente tornando o meio mais hospitaleiro para a colonização por outras formas de vida. É o que o biólogo Cleber Diniz pretende investigar mais a fundo durante o doutorado em curso, sob orientação de Juliana. “Eu estava estudando Corumbella, mas descobri que havia algo muito mais desconhecido para explorar”, conta. Ele já fez uma coleta detalhada, camada por camada, em pedreiras da região, e já sabe onde estão os vestígios de nematoides.

Nos próximos anos, um grupo de cerca de 15 docentes brasileiros e estrangeiros, e seus estudantes, devem esmiuçar esses achados no âmbito de um projeto de pesquisa coordenado pelo geólogo Ricardo Trindade, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. Por enquanto, Juliana comemora o fato de hoje o Brasil estar no mapa dos estudos do Pré-Cambriano. Literalmente: no início da colaboração entre o grupo da USP e os colegas do Reino Unido, Mato Grosso do Sul não era considerado importante para se entender esse momento geológico.

Projeto
 
O Sistema Terra e a evolução da vida durante o Neoproterozoico (nº 16/06114-6). Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Ricardo Ivan Ferreira da Trindade (USP); Investimento R$ 4.305.689,93.

Artigo científico
 
PARRY, L. A. et al. Ichnological evidence for meiofaunal bilaterians from the terminal Ediacaran and earliest Cambrian of Brazil. Nature Ecology & Evolution. n. 1, p. 1455-64. 11 set. 2017.

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